Vocativo da petição judicial: o uso do "doutor"
A polêmica sobre o uso no meio forense do qualificativo de ordem pessoal “doutor”
Luiz Cláudio Barreto Silva
I. Introdução
O emprego do qualificativo de ordem pessoal “doutor” é repudiado por grande parte da doutrina, apoiada em normas da correspondência oficial, para aqueles que não tenham doutorado.
Outra vertente, contudo, fundada, dentre outros argumentos, no uso e costume, apresenta entendimento diverso.
Considerando extensão do tema foi ele delimitado ao uso no meio forense e objetivou, sem pretender esgotar o tema, confrontar os posicionamentos doutrinários e identificar possíveis soluções para a matéria, bem como abrir caminho para novas discussões.
II. O posicionamento da vertente favorável ao uso nos dias atuais apenas para quem tem PhD
Hildebrando Campestrini e Ruy Celso Barbosa Florence com relação ao tema entendem que não deve ser utilizado o título de doutor na correspondência oficial, pois, consoante as regras oficiais, só pode acompanhar o nome: “Na correspondência oficial não se empregam qualificativos de ordem pessoal, como doutor (ou dr.), que é título acadêmico (só pode acompanhar o nome)”1
Maria Tereza de Queiróz Piacentini, embora reconhecendo que é comum essa forma de tratamento no meio forense, chama a atenção para o fato de que a tendência moderna é de se utilizar o designativo somente para aqueles que têm de fato PhD:
“No meio forense é comum dispensar esse tratamento ao juiz por deferência à sua autoridade, da mesma forma como se costuma tratar médicos e advogados por "doutor Fulano". Todavia, se é uma praxe correta, não é de rigor absoluto. A tendência moderna é atribuir o designativo de doutor somente a quem de fato tem um Ph.D.
Por isso às vezes se vê um "professor doutor" ou "Prof. Dr. Armênio", ou ainda a titulação no final: "Prof. Armênio, Dr.", como ocorre em teses e dissertações. Sendo assim, é o bastante escrever EXMO. SR. JUIZ DE DIREITO. Na correspondência, oficial ou não, de cunho mais recente, dispensa-se qualquer titulação na frente do nome quando o destinatário não é mesmo Doutor Ph.D. ou quando se desconhece tal fato”2
Cláudio Moreno, esclarece que, no mundo acadêmico, só pode ser chamado de “doutor” quem cumpriu o doutorado e com defesa de tese. Com relação aos advogados e médicos acredita que deve se tratar de resquício do ensino colonial, quando os jovens com maiores recursos iam à Europa estudar Medicina ou Direito:
“No mundo acadêmico, só pode ser chamado de "doutor" quem cumpriu as etapas constantes no curso de doutorado, incluindo a defesa de uma tese original diante de uma banca composta por cinco outros doutores (no sistema brasileiro, que alguns acham exigente demais, isso só pode ser feito depois de se ter concluído o curso de Mestrado). Quando se ouve, na Universidade (ou aqui no sítio Sua Língua) alguém anunciado como "Professor Doutor", é porque ele é doutor mesmo.
Saindo um pouco do mundo universitário, são também chamados de doutores os médicos e os advogados. Isso deve ser resquício do ensino colonial, quando nossos jovens abonados iam à Europa estudar Medicina ou Direito. Aliás, o sentido mais geral da palavra "doutor", no Brasil, é o de médico. "Ele foi ao doutor" vai ser interpretado por quase todos os falantes como equivalente a "ele foi ao médico". ”3
É também o entendimento de Victor André Liuzzi Gomes:
“Recentemente, chamou-me a atenção à solução de determinada demanda judicial que tramitou na Corte Fluminense envolvendo magistrado que pleiteava tratamento formal de “Doutor” por parte dos funcionários do condomínio onde residia. O colega que julgou o caso negou-lhe a tutela jurídica solicitada, alegando que, embora se tratasse de um Juiz digno, merecedor de todo o respeito, não poderia ostentar tal faculdade, pois "Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau.
(…).
Na prática, entretanto, chamamos o juiz, o deputado, o delegado, o promotor, etc.., mesmo sem aquela mais alta graduação universitária, de "doutor". Por quê? A lei não confere aos detentores desses cargos públicos a denominação de doutor. A linguagem técnica, recomendável até por uma questão de etiqueta, indicaria chamá-los apenas por senhor seguido da indicação do cargo, ou seja, senhor juiz, senhor deputado e assim por diante.
Semelhante costume atinge aos profissionais da saúde. Chama-se o médico de doutor, mesmo aqueles que não possuem doutorado.
A explicação para a prática em análise é facilmente encontrada. Em um país em que o analfabetismo e a pobreza atingem níveis escandalosos, criou-se o entendimento comum de que, quem consegue concluir um curso superior, qualquer que seja, torna-se "doutor". 4
III. O posicionamento da vertente favorável ao uso do “doutor” para advogados mesmo sem doutorado
Gilberto Scarton, em estudo direcionada para diversas áreas, conclui, com fundamentos legais histórios, que o “doutor” do advogado e do médico é legítimo, pois, surgiu, se fixou e se mantém por longa tradição, por especial e espontânea deferência dos cidadãos:
“Os advogados
O título de "doutor" foi outorgado, pela primeira vez, por uma universidade, a um advogado, em Bolonha, que passou a ostentar o título de ‘Doctor Legum’.
Entre nós, a tradição de se chamar o advogado de "doutor" remonta ao Brasil Colônia. Naquela época, as famílias ricas prezavam sobremaneira ter em seu meio um advogado (e também um padre e um político). O meio de acesso a esses postos era a educação.
O advogado – conhecedor de leis, detentor de certo poder de libertar e de prender – assenhorava-se desse poder mediante formação privilegiada. A tradição logo transformou o termo em sinônimo de posição superior dentro da escala social.
Há que se mencionar ainda o Alvará Régio, editado por D. Maria, a Pia, de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito passaram a ter o direito ao tratamento de "doutor". E o Decreto Imperial (DIM), de 1º de agosto de 1825, que deu origem à Lei do Império de 11 de agosto de 1827, que "cria dois Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais; introduz regulamento, estatuto para o curso jurídico; dispõe sobre o título de doutor para o advogado".
(…).
Entre os advogados, há quem pense que os médicos pretendem monopolizar o título de doutor, primeiramente empregado por advogados. Entre médicos, há quem considere que enfermeiros e fisioterapeutas que se intitulam "doutores" fazem propaganda enganosa, dando a impressão de serem médicos. Entre os pós-graduados que cursam doutorado e defendem tese há quem julgue que somente eles podem ser chamados de doutores.
Constatada a polêmica, e depois do que se escreveu até aqui, apresentam-se algumas conclusões, abertas a críticas e a outros considerandos.
1. O "doutor" do advogado e do médico surgiu, se fixou e se mantém por longa tradição, por especial e espontânea deferência dos cidadãos, dos utentes da língua. Uso legítimo, pois, "O que o simples bom senso diz é que não se repreende de leve num povo o que geralmente agrada a todos", disse o poeta Gonçalves Dias. Bem mais antiga é a sentença de Horácio ao se referir ao uso, que ele considera proponderante na interação lingüística : "Jus et norma loquendi" ( A lei é a norma da linguagem.)
2. Entende-se, pois, que a língua é uma questão de usos e costumes. Que os falantes são os senhores absolutos de seu idioma. Que os usos lingüísticos não se regulamentam por decretos, por imposição de resoluções. A lei, em questões lingüísticas, é ilegal. Quem ousa legislar sobre o que se deve e o que não se deve dizer incorre em abuso de poder. É uma atitude irracional e irrealista, pois nada altera o que é de uso consagrado. Aos que se insurgem e vociferam contra tais usos, que têm direitos de cidadania, Mestre Luft lembrava a frase: "Os cães ladram e a caravana passa". 5
Na mesma linha de entendimento, Joseval Martins Viana:
“A primeira informação inconsistente que ouvi é de que não se pode colocar a palavra “doutor” no cabeçalho, porque “doutor” é título acadêmico e o juiz de direito não tem doutorado. Já escrevi sobre este assunto. Reforço minha posição: nas petições, a palavra doutor é pronome de tratamento que foi, por lei, atribuído ao operador do Direito. Mesmo que se descartasse o Decreto n. 17.874ª de 09 de agosto de 1827, o pronome de tratamento “doutor” sempre, mas sempre, foi utilizado no cabeçalho das petições. Não se pode tirá-lo somente porque algum desconhecido disse que não se deve usar a palavra “doutor”. Nunca li um artigo que fundamentasse a exclusão da palavra “doutor” do endereçamento”. 6
Outro não é o entendimento de Júlio Cardella, ressaltando que é honraria legítima de advogados e juristas:
“Houve, portanto, como afirmamos, um caso de "usucapião por posse violenta" por parte dos médicos que passaram a ostentar a honraria, que no Brasil, é uma espécie de "collier a toutes les bêtes", pois qualquer um que se vê possuidor de um diploma universitário, se auto-doutora…
Sendo essa honraria por tradição autêntica dos Advogados e Juristas, entendemos que a mesma só poderia ser estendida aos diplomados por Escola Superior, após a defesa da tese doutoral. Agora, o bacharel em Direito, que efetivamente milita e exerce a profissão de Advogado, por direito lhe é atribuída a qualidade de Doutor. Se não vejamos: O Dicionário de Tecnologia Jurídica de Pedro Nunes, coloca muito bem a matéria. Eis o verbete: BACHAREL EM DIREITO – Primeiro grau acadêmico, conferido a quem se forma numa Faculdade de Direito. O portador deste título, que exerce o ofício de Advogado, goza do privilégio de DOUTOR. (aos que gostam de pesquisar citamos as fontes dessa definição: Ord. L. 1° Tit. 66§42; Pereira e Souza, Crim. 75. e not. 188; Trindade, pág. 157, nota 143 in fine, e pág. 529 § 2°; Aux. Jur., pág. 355 Ass93)”. 7
Também assim preleciona Jarbas Andrade Machioni, lembrando, no trabalho, a importância da tradição na linguagem:
“Esses títulos não correspondiam a um procedimento de pesquisa moderna (algo que se assemelhasse ao nosso sistema de mestrado ou doutorado), mas apenas de habilitação seja à docência e seja à pratica, visando principalmente à entrada do titulado para uma corporação de ofícios (guild, no texto original – conforme Reinildis van Ditzhuyzen, em http://ugle.svf.uib.no/svfweb1/filer/1309.pdf – esse texto é um estudo sobre o projeto Bolonha, tendente a unificar o os programas de doutoramento na Europa). Convém ressaltar que os títulos de pesquisa independem do magistério universitário, embora devam ser pré-requisito.
Logo, tanto a Universidade de Bolonha quanto de Paris passaram a apresentar alguma sistemática para reconhecer o titulo. Todavia, a idéia de doutorado enquanto pesquisa, somente surge em Berlim, na Universidade de Humboldt em 1810 . (http://ugle.svf.uib.no/svfweb1/filer/1309.pdf, pg. 2) .
Nossas raízes remontam, obviamente, a Portugal. Podemos identificar que em 1400, o mítico jurisconsulto português João das Regras é nomeado reitor na Universidade de Coimbra, já ostentando o titulo de doutor em leis, pela Universidade de Bolonha. Aliás, João das Regras, autor da famosa Lei Mental, é uma personagem que faria muito sucesso no Brasil de hoje…
O tratamento estendeu-se a desembargadores, juízes e advogados em geral.
No Brasil, a literatura do século 19 (a despeito da usualmente irônica e até cruel visão a respeito do bacharel, como demonstrou Eliane Botelho Junqueira em Literatura e Direito – Uma Outra Leitura do Mundo das Leis), desde Machado Assis até José de Alencar, reflete a prática do tratamento de doutor ao advogado. Prática essa que diuturnamente se confirma até hoje, em bancas, congressos, tribunais e perante o público em geral”. 8
Em igual sentido, a lição de Denis C. da Cruz.
“Antes de tudo, cumpre esclarecer que a tradição é também fonte legítima de Direito.
Segundo a História, somente se outorgou pela primeira vez o título aos filósofos, chamados de “doctores sapientiae”. Os que promoviam conferências públicas sobre temas filosóficos, também eram chamados doutores. Aos advogados e juristas era atribuído o título de “jus respondendi”, ou seja, o direito de responder.
Pelas Universidades o título foi outorgado pela primeira vez, a um advogado, que passou a ostentar o título de “doctor legum”, em Bolonha. Existia também o título denominado “doctores es loix”, que só era conferido àqueles versados na ciência do Direito.
Depois disso, a Universidade de Paris passou a conceder a honraria somente aos diplomados em Direito, chamando-os de “doctores canonun et decretalium”. Após a fusão do Direito com o Direito Canônico, os diplomados eram chamados de “doctores utruisque juris”.
(…).
Segundo a lei em pauta, o título de Doutor é destinado ao bacharel em direito que se habilitar ao exercício da advocacia conforme os requisitos destinados.
Explico: atualmente, o Estatuto da OAB determina a necessidade de, além de preencher uma série de requisitos, ser aprovado em Exame de Ordem, para, só então, o bacharel em Direito poder ser considerado Advogado.
Portanto, legalmente falando, o Advogado, habilitado segundo o Estatuto da OAB, é Doutor”. 9
IV. Conclusão
Não se desconhece que nos dias atuais raramente são encontradas petições que não contenham no vocativo o tratamento “doutor” razão pela qual, sem desmerecer o entendimento daqueles que repudiam o seu uso para quem não tenha o chamado “doutorado”, este trabalho adota o posicionamento mais flexível entendendo que diante da consagração do uso do doutor no vocativo a sua utilização, embora opcional, não merece críticas.
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Notas e referências bibliográficas
1. CAMPESTRINI, Hildebrando e FLORENCE, Ruy Celso Barbosa. Como redigir petição inicial. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 68.
2. PIACENTINI, Maria Tereza de Queiroz. Não tropece na língua. disponível em: http://www.linguabrasil.com.br/exibe_coluna.php?x=22 Acesso em: 11.06.2005.
3. MORENO, Cláudio Sua Língua. Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/sualingua/03/03_doutor.htm . Acesso em: 11.06.2005.
4. GOMES, Victor André Liuzzi. O País dos doutores. Disponível em: < http://www.escritorioonline.com/webnews/noticia.php?id_noticia=6483& > Acesso em: 10 set. 2006).
5. SCARTON, Gilberto. Todos nós somos doutores. Disponível em: http://www.pucrs.br/manualred/textos/texto8.php. Acesso em:
11.06.2005.
6. VIANA, Joseval. As Técnicas Redacionais e a Prática Forense. VIANA, Joseval. As técnicas redacionais e a prática forense. São Paulo, 19 de junho de 2006. Disponível em http://www.abdir.com.br/artigos/ver.asp?art_id=310. Acesso em : 28/6/2006.
7. CARDELLA, Júlio. ADVOGADO É DOUTOR POR DIREITO E TRADIÇÃO. Disponível em: http://www.vrnet.com.br/oabeunapolis/artigo-doutor.html . Acesso em: 19 set. 2006.
8. MACHIONI, Jarbas Andrade. Advogados e o tratamento de doutor . Disponível em:< http://ultimainstancia.uol.com.br/noticia/27093.shtml > Acesso em: 13 set.2006.
9. CRUZ, Denis C. da. Advogado é Doutor? Disponível em: < http://http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/129934 . Acesso em: 13 set.2006.*****
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Parabéns para o site:lcbsa2.wordpress.com/.../falando-sobre-vocativo-da-peticao-judicial-o-uso-do-doutor/ -
The inércio is so lazy he can not understand the reason for their existence.DR.Jocarlos Gaspar-Prize Of The Peace-Greece 2005-The Thinker
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